Contribuições Sociais
Introdução
A positivação, no Texto Constitucional, de espécies tributárias que se caracterizam pela respectiva finalidade, fez necessária a construção – ou a reconstrução – de parte da Ciência do Direito Tributário, pelo menos no que pertine à explicação desse novo modelo de validação constitucional, inteiramente distinto daquele aplicável a impostos e taxas.
Muitas dificuldades surgiram, e subsistem, nesse mister. No seu enfrentamento, há doutrinadores que se recusam a admitir a natureza específica das contribuições, aprisionados no paradigma “impostos x taxas”. Observam-se, também, aqueles outros que, diante da novidade, aceitam-na incondicionalmente e supervalorizam as suas potencialidades, fascinados pelo novo, tachando toda a doutrina preexistente de ultrapassada e ineficaz. É importante, em momentos assim, evitar posições extremadas, tendo sempre em mente a lição de Pontes de Miranda, para quem o cientista do Direito deve ter, como qualquer cientista, aquele senso, “para que se não apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pela sedução do novo: a Ciência é a livre disponibilidade do espírito, mas tem peneira fina, que é a da verificabilidade”1.
Nesse contexto, deve-se admitir que as contribuições são, sem dúvida, espécie tributária distinta, submetida a regramento em alguns aspectos diferente daquele aplicável a impostos e taxas. Não se pode esquecer, contudo, que não houve extinção da figura dos impostos e das taxas, que subsistem em nosso Sistema Tributário, e, especialmente, que a forma adotada pelo Estado Brasileiro continua sendo a federativa, a qual foi fortalecida, e não mitigada, pela Constituição Federal de 1988. Esses dois elementos são da maior importância no exame de quaisquer problemas relacionados às contribuições.
E problemas jurídicos no âmbito das contribuições não faltam. A maior parte deles se situa na área da chamada validação finalística, exatamente o traço distintivo das contribuições. Desde aspectos pertinentes ao plano normativo, como, v.g., sobre quais circunstâncias autorizam a instituição de contribuições, até questões relativas ao plano fático, como, por exemplo, verificar se está havendo efetivo atendimento da finalidade que justifica a contribuição, e quais as conseqüências de eventuais desvios, tudo é novo se comparado à vetusta teoria dedicada a impostos e taxas, suscitando assim profundas controvérsias, e carecendo ainda da devida experimentação e teorização.
Sobre as circunstâncias que justificam a instituição de contribuições, ou, especificamente, sobre as finalidades para as quais estas se podem prestar, questão bastante relevante, e que colhemos para exame no presente texto, é a de saber quais espécies – ou subespécies – de contribuições são admitidas pela Constituição, e, especialmente, se existe a possibilidade de serem instituídas contribuições sociais “gerais” além daquelas já expressamente previstas ao longo da Constituição Federal.
É do que cuidamos a seguir.
1. Contribuições. Espécies e subespécies
O art. 149 da Constituição Federal, dispositivo por intermédio do qual se atribuiu à União Federal competência para instituir contribuições, tem o seu caput redigido da seguinte forma:
“Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.
A partir do dispositivo acima, e a despeito de algumas divergências a nosso ver meramente terminológicas, a doutrina tem dividido as contribuições em três espécies2, a saber: (a) contribuições sociais; (b) contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas e (c) contribuições de intervenção no domínio econômico.
Discrepâncias substanciais surgem quando se perquire acerca das subdivisões das (a) contribuições sociais, que se podem prestar (a.1) ao custeio da Seguridade Social e (a.2) ao financiamento de outras atividades sociais. Para alguns autores, essas contribuições sociais não destinadas à Seguridade Social (a.2) seriam não apenas aquelas expressamente previstas na CF/88 (v.g. PIS e Salário Educação), mas quaisquer outras, desde que se destinem a uma finalidade social.
É o que chamam de contribuições sociais “gerais”, que recebem essa qualificação exatamente porque não têm sua finalidade especificada constitucionalmente. Seu leque de possibilidades seria amplo, porquanto poderia abranger saúde; educação; proteção ao trabalho, à criança, ao adolescente, à família, ao idoso e aos índios; incentivo à educação, à cultura, ao desporto, à comunicação social e ao meio ambiente; enfim, toda a gama de conceitos que podem ser abrigados sob a expressão “social”.
Um dos autores que parece admitir a existência de contribuições sociais gerais é Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem o art. 149 da Constituição…
“… sugere quatro espécies de contribuições: 1) contribuições sociais de destinação não constitucionalmente determinada; 2) contribuições de intervenção no domínio econômico; 3) contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas; e 4) contribuições para a seguridade social.
A primeira espécie é novidade. Fica assim a União autorizada a instituir as contribuições sociais que se justificarem, observadas as normas dos arts. 146, III, e 150, I e III.”3.
Não obstante o imenso respeito que merecem Manoel Gonçalves Ferreira Filho e os demais doutrinadores que entendem possível a instituição de contribuições sociais gerais, “de destinação não constitucionalmente determinada”, tal orientação não nos parece procedente, especialmente por conduzir, de uma vez por todas, à destruição da racionalidade de nosso Sistema Tributário e ao fim da Federação.
2. A insuficiência do elemento literal
É verdade que, em face da literalidade do art. 149 da Constituição, parece possível afirmar a existência de contribuições sociais gerais, ao lado das contribuições de intervenção no domínio econômico, de interesse de categorias profissionais ou econômicas, e de custeio da seguridade social.
Entretanto, a literalidade também nos autoriza a afirmar que “contribuições sociais” é referência genérica a uma espécie que se divide em a) contribuições sociais de intervenção no domínio econômico, b) contribuições sociais de interesse de categorias profissionais ou econômicas, e c) contribuições sociais de custeio da seguridade social4. As contribuições ao PIS e salário educação, entre outras referidas em dispositivos constitucionais esparsos, seriam exceções à classificação exaustiva feita pelo art. 149, admissíveis apenas por haverem sido introduzidas no ordenamento por norma de igual hierarquia.
Por outro lado, a expressão literal do art. 149 da CF não desautoriza a afirmação segundo a qual as contribuições sociais ali referidas são precisamente as de seguridade social e as demais contribuições de finalidade social elencadas de modo expresso ao longo da Carta, como as contribuições ao PIS e ao salário educação, sem espaço para contribuições “gerais”. Realmente, em momento algum o art. 149 assevera que as contribuições a que alude o art. 195 não são sociais, embora estejam submetidas a alguns dispositivos específicos, única ressalva feita na parte final do dispositivo.
Tudo isso mostra que o elemento literal não nos oferece resposta ao problema aqui questionado. Qualquer solução, em face dele, é possível, o que revela ser indispensável o emprego de outros métodos exegéticos, e o acerto de todos que no elemento literal vêem apenas um ponto de partida para a atividade interpretativa, tão necessário quanto insuficiente para dar ao intérprete resultados conclusivos5.
Assim, nos itens seguintes, ao invés de se discutir o significado da posição das vírgulas empregadas na redação do art. 149 da Constituição, analisar-se-á a natureza das contribuições, e a força normativa de princípios que com elas se relacionam diretamente. Esse é o caminho seguro para descobrirmos se a Constituição admite, ou não, a criação de contribuições sociais “gerais”.
3. Contribuições se caracterizam por uma finalidade determinada
É relativamente pacífico, entre doutrinadores e nos Tribunais, que as contribuições são espécie tributária que se caracteriza pela respectiva finalidade. Essa frase é invocada, nem sempre de modo pertinente, como uma fórmula mágica, com a qual o Fisco pretende – e às vezes consegue – instituir exações não submetidas a imunidades, que invadem competências de outros entes federados e desvencilham-se de princípios constitucionais tributários da mais alta significação. Nada se lhe aplica, porquanto o importante é a finalidade constitucionalmente definida, e por isso – há quem conclua – sacrossantos são os meios para tanto empregados.
Sem entrar em tais discussões, que, embora do maior relevo, não teriam pertinência aqui, importa no momento apenas colher a afirmação, de resto admitida, de que a limitação constitucional à criação e à cobrança de contribuições é, por excelência, a vinculação destas a uma finalidade específica e determinada na própria Carta Magna. Ao dizer-se isto, pressupõe-se que essa finalidade seja certa6, de sorte a distinguir as contribuições dos demais tributos, e também distingui-las entre si.
O que é, então, uma contribuição social geral, sem finalidade determinada de modo específico na Constituição? Parece-nos, pura e simplesmente, uma enorme contradição, que serve de disfarce para a instituição de impostos inconstitucionais. Dizer-se contribuição sem finalidade específica é o mesmo que dizer contribuição que não é contribuição: absurdo que dispensa maiores comentários.
4. Contribuições sociais “gerais” e a racionalidade do Sistema Tributário
Poder-se-ia contraditar o que afirmamos no item anterior com a seguinte objeção: as contribuições sociais “gerais” têm sim uma finalidade determinada na Constituição, na medida em que se prestam para custear atividades relacionadas à ordem social, referidas nos arts. 193 a 232 da CF/88. Poderia ser criada uma contribuição específica para custear a FUNAI, que ampara os índios. Outras, cada uma específica, para saúde, comunicação, educação, cultura, desporto, etc.
É essa a doutrina de Ricardo Conceição de Souza, que, em recente e muito bem feita obra sobre o assunto, disserta:
“Pensamos que a União tem competência para instituir contribuições como instrumento de sua atuação em qualquer segmento da ordem social, de que trata o Título VIII da Constituição da República.
Se assim não fosse, o art. 149 da Carta Constitucional não teria sentido algum.
Vale dizer, se a União tivesse competência apenas para instituir contribuições sociais discriminadas no próprio corpo da Constituição, como sucede em relação aos artigos 195, 212, § 5.º, e 239, o art. 149 seria desprovido de sentido jurídico, o que nos parece sem fundamento.
Ora, se as contribuições são somente aquelas dos artigos supra citados, não haveria necessidade do constituinte preocupar-se na elaboração do art. 149, cujo conteúdo ou estaria esvaziado, ou seria mera redundância.
Neste tipo de trilha, também não haveria como explicar as contribuições previstas no art. 240, já que o mesmo não indica nenhum signo presuntivo de riqueza, mas apenas uma finalidade.
O fato é que o art. 149 é a regra-matriz, enquanto os outros dispositivos constitucionais citados têm função de especialização.”7
Não obstante o respeito que merece citado autor, seu argumento, data venia, é de procedência apenas aparente. Tanto as premissas quanto as conclusões a que chega não são acertadas, sendo inadequado defender a existência de contribuições sociais gerais sob a singela justificativa de, assim, se estar atribuindo algum sentido ao art. 149, atendendo às preocupações do constituinte que o redigiu.
Inicialmente, em 1988 não houve “um constituinte”, que “se preocupou” com o art. 149, e sim um corpo democrático e heterogêneo de parlamentares que elaborou um documento, no qual foram conciliados os mais contraditórios interesses, não sendo assim exigível do texto da CF/88 – nem de nenhuma outra Constituição prolixa e democrática – absolutas coerência e precisão terminológica. Lógica, sistematicidade, coerência e precisão irreprocháveis são verificadas apenas em Constituições outorgadas, ditatoriais, porquanto elaboradas por poucas ou mesmo por uma só cabeça, à serviço exclusivo de um mesmo grupo de interesses. Foi o que ocorreu, no Brasil, com a Constituição de 1937. Em qualquer caso, porém, é importante destacar, como fez Pontes de Miranda, que “o voluntarismo é correlativo do despotismo. Procurar a vontade do legislador ou da lei é andar à cata do mando do déspota. Não é processo para espíritos livres, que amem a verdade e a ciência e, sim, digamos o termo, ocupação de escravos”8.
Aliás, a mesma “perda de sentido” supostamente verificada a partir do cotejo da expressão “contribuições sociais”, constante da parte inicial do art. 149, com os demais dispositivos constitucionais que prevêem a criação de contribuições sociais, ocorre entre o art. 145, I e os demais dispositivos da Constituição que se referem a impostos. Com efeito, se toda a competência impositiva de União (inclusive a residual), Estados-membros, Distrito Federal e Municípios encontra-se discriminada nos arts. 153, 154, 155 e 156, qual o sentido do art. 145, I, da CF ? Ter-se-ia de admitir, para dar-lhe algum sentido, que outros impostos podem ser criados, ultrapassando os limites já impostos ao longo da Constituição ? Na verdade, o cotejo de muitas das normas, consideradas isoladamente, com o sistema jurídico como um todo, demonstra, muitas vezes, o papel estruturante de algumas delas, que se prestam a fins didáticos9, de dar coesão e racionalidade aos demais dispositivos. Só isso.
Além disso, não se pode, a pretexto de atribuir sentido a uma palavra contida em um dispositivo, anular total ou parcialmente o sentido de muitos outros. Nenhuma significação teria a referência feita pela Constituição à contribuição para o salário educação, por exemplo, na medida em que a mesma pudesse ser criada sob o rótulo de contribuição social “geral”. Seria irracional, também, a criação de um regime jurídico diferenciado para as contribuições de custeio da seguridade social (materialidades, competência residual, anterioridade nonagesimal, etc.), na medida em que as mesmas finalidades poderiam ser alcançadas por contribuições sociais gerais.
Nesse ponto, importa lembrar que as finalidades de cunho social não são encontradas apenas nos arts. 193 a 232 da Carta Magna, mas em todo o seu texto, sendo a CF/88, em muitas de suas dimensões, uma Constituição do Estado social10. Assim, praticamente todas as atividades desenvolvidas pela União Federal envolvem aspectos sociais, e poderiam dar azo à instituição de contribuições sociais “gerais”. E, em face de contribuições gerais, que sentido teria o sistema de atribuição de competências e estabelecimento de limitações para a instituição de impostos e taxas federais ? O espectro de tais contribuições seria tão amplo que tudo engolfaria, e todos os tributos federais poderiam com folga ser substituídos por contribuições, submetidas apenas aos arts. 146, III e 150, I e III. Perderia o sentido todo o Sistema Tributário Nacional.
Enfim, não são apenas outras regras e princípios positivados na Constituição, mas a própria lógica formal que torna impossível a divisão de um gênero em três espécies, quando em uma delas se podem enquadrar todas as demais. A União jamais criaria contribuições com arrimo no art. 195, § 4.º, por exemplo, se lhe fosse possível atender às mesmas finalidades com contribuições “gerais” instituídas nos moldes do art. 149. Aliás, todas as limitações estabelecidas ao exercício da competência residual, seja no âmbito das contribuições, seja na esfera dos impostos, seriam absolutamente desnecessárias.
Com isso, malfere-se ainda o princípio da razoabilidade, tido como implicitamente positivado na CF/88, em seu art. 5.º, LIV, enquanto desdobramento ou conseqüência do princípio do devido processo legal considerado em seu aspecto substantivo. Sobre o tema, aliás, é assaz pertinente a doutrina de Linares Quintana, que explica:
“Toda actividad estatal para ser constitucional debe ser razonable. Lo razonable es lo opuesto a lo arbitrario, y significa: conforme a la razón, justo, moderado, prudente, todo lo cual pode ser resumido: com arreglo a lo que dicte el sentido común. (…) La ley que altera, y com mayor razón todavía, suprime el derecho cuyo ejercicio pretende reglamentar, incurre en irrazonabilidad o arbitrariedad, en cuanto imponga limitaciones a éste que no sean proporcionadas a las circunstancias que las motiovan y a los fines que se propone alcanzar com ellas.”11
O caráter desarrazoado de uma interpretação que vê em uma palavra contida em um artigo isolado a destruição de outras partes desse mesmo artigo, e ainda dos demais dispositivos que distribuem competências e limitam o poder de tributar, dispensa maiores explicitações.
Mas não é só.
5. Contribuições sociais “gerais” e a Federação
A demolição do Sistema Tributário causada pela admissão de contribuições sociais gerais, referida no item anterior, não traria malefícios apenas aos contribuintes, que seriam submetidos a uma tributação ainda mais imprevisível, incompreensível e irracional. Os maiores prejudicados seriam os Estados e os Municípios, com sérios abalos na forma federativa de Estado, alçada ao patamar pétreo da CF/88.
É sabido que a autonomia de qualquer ente, desde a do jovem que pretende sair da casa dos pais, até a do Estado que não deseja submeter-se às determinações da União Federal, está diretamente relacionada com auto-suficiência financeira. Dependentes financeiramente do poder central, Estados e Municípios teriam – como às vezes têm – a liberação de verbas para suas necessidades locais condicionada ao atendimento das exigências feitas pelo poder central. A autonomia seria meramente ornamental.
Pertinente, no caso, é a lição de Amílcar de Araújo Falcão, que ensina:
“A razão de ser da importância da discriminação de renda, na federação, é evidente e se consubstancia na circunstância mesma de constituir uma exaltação, um grau superlativo das autonomias, sobretudo as periféricas, cujo convívio equilibrado com a unidade central se quer assegurar.
Por isso mesmo é que a discriminação de rendas, nas federações, costuma ser fixada no próprio texto constitucional. Só por exceção assim não acontece. Na Áustria, por exemplo, a partilha tributária foi confiada ao legislador federal; não obstante, o ato legislativo terá discussão e votação sob o regime especial do art. 44 da Constituição austríaca, referente às chamadas leis ou disposições constitucionais e será designado como lei constitucional de finanças (Finanzverfassungsgsetz)
Em uma palavra, discriminação de rendas e autonomia local – ou, para usar a expressão de preferência dos autores de língua inglesa, autonomia de governos locais – são problemas que se integram num só contexto.”12
Foi por essa razão que a CF/88 cuidou de dividir a competência tributária entre União, Estados e Municípios, redobrando seus cuidados no trato da chamada competência residual, cujos impostos com base nela criados hão de ter o produto de sua arrecadação partilhado entre Estados e Distrito Federal (CF/88, art. 157, II). Dito isto, nem precisamos entrar na questão de saber se as contribuições podem incidir sobre fatos pertencentes à competência impositiva de Estados e Municípios para termos por contrária à federação a existência de contribuições sociais gerais. De fato, o desequilíbrio gerado por essa espécie tributária, verdadeira brecha que se abre na competência residual da União, que se torna assim ilimitada e não partilhada, tornaria sem efeito a divisão de competências feita pela Constituição Federal.
E, destaque-se, não são poucas as vozes que admitem a incidência de contribuições sobre fatos submetidos à tributação de Estados e Municípios, ou mesmo sobre fatos praticados por Estados e Municípios. Diante da possibilidade de criar contribuições gerais, a União teria formidável instrumento para subjugar todos os demais entes. A finalidade poderia ser determinada por lei, dentre as centenas ou mesmo milhares de possibilidades ofertadas pela Constituição, e as imunidades e demais restrições ao poder de tributar não lhe seriam aplicáveis. Seria mesmo o fim da federação.
6. Sopesamento de princípios e a relativização de direitos fundamentais
6.1. Noções iniciais
É assente no atual constitucionalismo a positividade e a normatividade dos princípios, que passaram de um papel subsidiário à lei, aplicáveis apenas na hipótese de lacuna, à medula das Constituições dos Estados pós-modernos. Essa nova teorização, batizada por alguns de pós-positivismo, e por outros de um neopositivismo13, tem como principais expoentes Robert Alexy e Ronald Dworkin e, em face dela, já não poderíamos admitir o malferimento puro e simples do princípio federativo, bem como do princípio da razoabilidade, e de todos os princípios constitucionais tributários indiretamente afastados com a admissão de que a competência tributária da União pode ser exercida através de contribuições gerais, tendo-os por normas “meramente programáticas”.
Resta saber, contudo, se e até que ponto tais princípios podem ceder diante de princípios outros, inerentes ao Estado Social, e que animam a existência, a instituição e a arrecadação de tributos, especificamente de contribuições sociais, a exemplo dos princípios da proteção ao trabalho, ao emprego, à velhice etc. e que de certa forma se confundem com a finalidade de algumas delas.
Neste ponto, ressaltamos o perigo do uso deturpado dos métodos de sopesamento de princípios. Ao invés de conciliar valores igualmente nobres, tal sopesamento por vezes é utilizado de modo equivocado e unilateral, prestando-se ao puro e simples estiolamento de direitos fundamentais, cotejados com princípios tão autoritários quanto vazios como o do “interesse público”. A situação muda quando tal sopesamento é invocado contra os interesses do Estado, quando não raro a doutrina jurídica por este invocada – e infelizmente aceita por nossas Cortes Superiores – retrocede trezentos anos, à escola da exegese, e princípios fundamentais são mutilados em favor da disposição expressa, literal e isolada de uma regra. Isso, porém, não desmente a força normativa dos princípios, nem a validade do método empregado na conciliação destes, mas impõe redobrado cuidado na escolha dos princípios a serem proporcionalmente conciliados, e no peso a ser-lhes atribuído, em cada caso. É o que procuramos fazer adiante.
6.2. Conflito de princípios no âmbito das contribuições. Sua conciliação
Centrando nosso foco nos princípios positivados na CF/88, pertinentes à matéria, percebemos o princípio federativo, cujo malferimento já foi examinado linhas acima, e que tem nos arts. 154, I, 157, II, e 195, § 4.º, todos da CF/88, o necessário desdobramento, a impor um equilíbrio nas competências tributárias dos diversos entes federados, e, por conseguinte, na autonomia de cada um deles.
Temos, igualmente, a razoabilidade, tida como positivada no art. 5.º, LIV, da CF/88, desdobramento necessário do devido processo legal considerado em seu aspecto substantivo, seriamente malferida por uma contribuição geral que torna vazio o sistema tributário, e sem sentido a maior parte das limitações impostas ao poder de tributar.
De outro lado estão os princípios da solidariedade social, inerentes à ordem social, a animarem a própria criação do Estado, a respectiva cobrança de tributos, e, especificamente, de contribuições. Tais princípios impõem ao Estado ações positivas no âmbito das respectivas áreas, e legitimam, em caráter secundário, a cobrança das contribuições a tanto necessárias.
Para alguns, pode parecer que tal sopesamento deveria ser feito no sentido de privilegiar a instituição de contribuições sociais gerais, porquanto a delimitação de competências e as limitações ao poder de tributar, figuras “típicas de um Estado Liberal ultrapassado”, não se aplicam às contribuições, animadas pelos ideais do Estado Social.
Não nos parece correto, contudo, afirmar a supremacia absoluta dos valores inerentes ao Estado social sobre o princípio da Federação. Primeiro, porque o próprio Poder Constituinte Originário cuidou de sopesar esses valores aparentemente antagônicos. Segundo, porque a Federação é referida logo no art. 1.º da Constituição, integrando o chamado texto imodificável de nossa Carta, não podendo ser suprimida por obra dos poderes constituídos. Quanto ao princípio da razoabilidade, a doutrina é unânime em admitir a sua aplicação, no âmbito de qualquer atividade estatal, como forma de controle desta. Será, assim, sempre um dado a ser considerado.
Aliás, não é correto invocar a figura do Estado social simplesmente para agigantar poderes, concentrando-os, favorecendo-se o autoritarismo. Paulo Bonavides, ciente dessa possibilidade, retifica a terminologia que antes adotara, e passa a classificar os direitos fundamentais em dimensões, e não em gerações, pois a palavra geração leva à idéia de que a posterior suprime a anterior, o que na verdade não acontece14. As conquistas do Estado social não implicam a supressão total daquelas inerentes ao Estado liberal, como é o caso da federação, e da maior parte das limitações constitucionais ao poder de tributar. Ao revés, consubstanciam limitações adicionais, de natureza positiva, que com as primeiras se somam.
Não se trata, destaque-se, de assumir postura contrária ao Estado social, cuja efetiva implantação todos devemos aspirar. Absolutamente. Trata-se, isto sim, de evitar que o Estado social se preste como mera justificativa para uma hipertrofia dos poderes Estatais, em prol de meios necessários à sua efetivação. Agigantam-se os meios, mas não se atingem os fins, em deturpação que consegue tornar ainda mais perversa a máxima maquiavélica: os meios passam a se justificar por si mesmos. No âmbito das contribuições, isso tem ocorrido demasiadamente. Seus nobres propósitos são invocados quando da instituição e da cobrança do gravame, mas são completamente esquecidos quando se trata de direcionar os recursos de uma carga tributária que nunca foi tão alta15.
Não custa lembrar, também, que o Imposto sobre Grandes Fortunas, figura típica de um Estado que se pretende “social”, e expressamente autorizado pela CF/88, jamais foi instituído. A União Federal prefere onerar aposentados e pensionistas com contribuições, o que revela, acima de tudo, sua inteira despreocupação com os ideais do Estado social, utilizados apenas como justificativas para crescentes aumentos na carga tributária. Aliás, em profundo estudo, José de Albuquerque Rocha denuncia “o papel autoritário e reacionário do Estado e do direito periféricos, por trás da máscara do Estado social”16. Aponta, ainda, que os altos custos necessários à implantação de um Estado social apenas servem de justificativa à cobrança dos tributos a tanto necessários, mas não são satisfeitos porquanto utilizados no pagamento inaudito dos elevados serviços da dívida externa17.
Além de tudo isso, o ponto mais importante a ser destacado é o de que todo sopesamento deve ser feito de sorte a que ambos os princípios em aparente conflito restem prestigiados na maior medida possível. Tendo o peso preponderante de ser atribuído apenas a um deles, este peso deve ser atribuído àquele que, vindo a prevalecer, cause menores estragos ao outro ou aos outros com ele cotejados.
Pois bem. Ao se repelir a existência de contribuições sociais gerais, em muito pouco, ou mesmo em nada, restarão diminuídos os princípios inerentes ao Estado social. Primeiro, porque se a tributação federal atualmente apresenta superávit, não há necessidade de mais recursos, mas sim de vontade política para aplicá-los corretamente. Segundo, porque para as mais importantes atividades de cunho social desempenhadas pelo Estado já existem contribuições expressamente previstas. No caso da seguridade social, há ainda a possibilidade de serem criadas contribuições no âmbito da competência residual (CF/88, art. 195, § 4.º), exações que podem ser arrecadadas sem qualquer dano ao sistema tributário ou a qualquer outro princípio. Caso admitíssemos a figura das contribuições gerais, por seu turno, o abalo à federação e à racionalidade do sistema tributário seria absolutamente sem precedentes, sem qualquer proveito efetivo aos ideais do Estado social. Enfim, medida desnecessária, inadequada e desproporcional.
Conclusões
Em síntese, podemos afirmar que:
a) as contribuições são espécie de tributo que pode ser dividida em 1) contribuições sociais; 2) contribuições de intervenção no domínio econômico; 3) contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas. As 1) contribuições sociais dividem-se ainda em 1.1.) contribuições de custeio da seguridade social e 1.2.) outras contribuições sociais, específicas, referidas expressamente na Constituição, a exemplo das contribuições sociais ao PIS e ao salário educação;
b) a idéia segundo a qual existem contribuições sociais “gerais”, sem finalidade constitucionalmente determinada, encerra uma contradição interna insuperável, porquanto a contribuição é tributo que se caracteriza precisamente em função dessa finalidade específica. Dizer-se que uma contribuição não tem a sua finalidade determinada de modo específico pelo Texto Constitucional é o mesmo que dizer “contribuição que não é contribuição”;
c) além disso, a admissão de tal espécie, cujo âmbito constitucional de incidência é praticamente ilimitado, esvaziaria por completo a competência residual estabelecida no art. 195, § 4.º, da CF/88, além da própria competência para instituir impostos e taxas. Tudo poderia ser arrecadado através de “contribuições gerais”, com a ruína da racionalidade do Sistema Tributário e com uma concentração de poder tributário tamanha no âmbito do poder central que a autonomia de Estados e Municípios não resistiria. A força centrípeta esmagaria a federação.
Publicado no Livro Grandes Questões Atuais do Direito Tributário – 6.º vol, São Paulo: Dialética, 2002, p. 171